Desde a longa pausa que dei nesse espaço, apenas um nome se manifesta nas conversas dos frequentadores deste bolicho. Jair Bolsonaro é protagonista, ao mesmo tempo, das defesas mais apaixonadas e das acusações de mais baixo teor. Que não fique em dúvida o posicionamento deste humilde barman: vejo no presidenciável um especial potencial de causar problemas no nosso funcionamento. Entretanto, como isso aqui é de pobre mas não é de bagunceiro, está na hora de definirmos os termos desta repulsa. E, principalmente, defender a tese de que os setores minimamente identificados com pautas progressistas são os principais responsáveis pelo surgimento desse indivíduo como cenário político possível.
O espectro de Bolsonaro ronda as eleições de 2018. Foto: Agência Brasil.
Quem é Jair Bolsonaro e quem o apoia?
É interessante que uma figura que desperta tanto interesse na opinião pública tenha os fatos de sua vida pessoal tão nublados. Em seu site oficial, a biografia é minúscula e com poucos detalhes. Deputado federal eleito pelo Partido Progressista do Rio de Janeiro e ocupando o seu nono mandato na câmara, Jair Messias Bolsonaro tem 62 anos, é casado, já foi divorciado duas vezes e possui cinco filhos. Antes de ingressar na Câmara, ocupou um mandato na Câmara de Vereadores do Rio. Seus três primeiros filhos fazem carreira política. Carlos, o mais velho, está no quinto mandato como vereador no Rio. Flávio, o do meio, está no quarto mandato como Deputado Estadual na ALERJ. E o caçula Eduardo faz companhia ao pai na Câmara Federal, pelo estado de São Paulo. Sua primeira esposa, Rogéria, ocupou um mandato de vereadora no Rio.
Os fatos mais importantes da vida de Bolsonaro podem ser encontrados dispersos nas redes. Se formou na Academia Militar das Agulhas Negras, foi preso por indisciplina militar, se aposentou como Capitão, tem um imenso histórico de ataques contra minorias sociais de todo e qualquer tipo e a defesa de políticas reativas e conservadoras. Em meio à votação do impeachment, defendeu o torturador Ustra, o que lhe rendeu uma boa dose de saliva de Jean Wyllys (PSOL-RJ). Nesta semana, está tendo dificuldade em explicar o dantesco crescimento de seu patrimônio e de seus filhos através da atividade pública – cuja imoralidade sempre condenou. Mas não é nessa salada de fatos que encontramos o ponto crucial à nossa análise. Quem é, afinal, o político Bolsonaro?
Este levantamento do jornal O Estado de S. Paulo é extremamente importante para compreender a atividade do político. Apesar de ter apenas dois projetos aprovados em seus quase trinta anos de Câmara, Bolsonaro apresenta um bom número de projetos à Casa: 171, uma média de 6,5 projetos ao ano. Destes, mais da metade são deslocados para a área dos militares e da segurança pública. Isso demonstra que o perfil histórico Bolsonaro não é o de um político que represente o conservadorismo em si e, sim, o de um eleito por uma causa específica. Este artigo do cientista político Paulo Silva Cesário é muito importante para desmistificar a constante argumentação de “falta de representatividade no Congresso”. O Congresso é sim representativo, representativo de determinados grupos que conseguem obter o capital político necessário para terem figuras que advogam por eles na arena institucional. No caso de Bolsonaro, militares da ativa e da reserva. Apesar de aparecer volta e meia sendo consultado pelas suas opiniões polêmicas (em materiais que são revividos mais pela atuação de Bolsonaro hoje que pelo seu impacto na época), Bolsonaro era um político do baixo clero, sem influência para aprovar os seus projetos e de uma vida partidária extremamente fluida e acomodando uma família inteira em postos públicos, eleitos pelos mesmo eleitorado fracionado e segmentado. Mais um entre os 513 deputados.
Este tipo de político é próprio da Nova República, com velhas tradições. O voto no Brasil permitiu a representação de grupos articulados por interesses pessoais, prevalecendo aqueles que conseguem participar de coalizões amplas o suficiente para garantir o funcionamento do poder Executivo. Esses políticos de perfil extremamente flexibilizado e fisiológico formam a base de sustentação da estabilidade democrática no Brasil. Foram abarcados pelos governos de FHC e, posteriormente, eram a espinha dorsal da base aliada de Lula e Dilma. Tudo começa a mudar para Jair Bolsonaro em 2011: com a proposta do “Kit Gay”, um grupo de fascículos pedagógico sobre diversidade sexual que circularia nas escolas públicas, os urros de Bolsonaro ganharam mais eco, um barulho ensurdecedor que ainda não parou de retumbar e mexe com os brios dos que temem pela democracia depois das eleições de 2018. Quem são as pessoas que passaram a ouvi-lo e porque não o ouviam antes?
É inegável que a partir da década de 2010, muitas pautas antes invisibilizadas passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas. Não é comum que um artista assumidamente homossexual e interpretando uma Drag Queen seja um dos mais ouvidos de 2017. Também não é comum ver toda uma faixa da programação da TV aberta dedicada a fazer deboche do que há de mais conservador em nossa sociedade. Com o esmorecimento das lutas estruturais (calma, já falo sobre), os movimentos sociais passaram a fazer a aposta gramsciana: vamos disputar a sociedade brasileira no âmago de sua cultura. Vamos, internamente, trocar a sua moralidade tradicional por uma moralidade coletiva, onde valores serão ressignificados e um novo policiamento de costumes será estabelecido, agora sob a égide de dar voz aos que tradicionalmente nunca falaram.
A disputa pela ressignificação cultural é extremamente importante, mas o abandono (não generalizado, mas massivo) da disputa estrutural tem sérias consequências. Afinal, é realmente positivo que essas pautas sejam consideradas “normais” em um mundo que definitivamente não opera sob mecanismos normais? Em um mundo que tem por estrutura de funcionamento a morte e a exploração? Em um mundo onde, bem sabemos, empoderar é vender e, consequentemente, lucrar? Isso gera um movimento que de forma alguma é conservador, e sim reacionário, que reage às mudanças justamente pelo fato de que o status quo não o contempla mais. Muito longe do estereótipo do Tio do Churrasco que “sempre teve privilégios”, o eleitor de Bolsonaro é, em sua maioria, jovem. Ao contrário de Lula, seu oponente mais imediato, Bolsonaro acumula um eleitorado pouco identificado com partidos e com a política institucional. O “Kit Gay” foi só um estopim de uma série de movimentações que aliam a indignação com o sistema ao ódio pelas pautas progressistas e (principalmente) identitárias. O eleitor de Bolsonaro não se vê como um pomposo nazista, trajando uma elegante farda negra da SS, e sim como um revolucionário. Contra tudo e contra todos. Não é estranho ouvir de seus apoiadores frases como “não nos calarão”: para seus apoiadores, Bolsonaro é odiado pelo sistema. E os constantes ataques que o político sofre dos grandes meios de comunicação só reforçam isso. Nada é mais uncool que Bolsonaro. E nada é mais cool que ser uncool.
2013: o ano em que (não) fizemos contato
Inicialmente, o título dado a esse texto seria “Bolsonaro é culpa nossa”. Um título apressado que logo tratei de corrigir. O velho barba já dizia: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade”. Em seu “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Marx explica como o sobrinho de Napoleão angariou o apoio da ralé como nós para se alçar ao topo. Às vezes pensamos estar defendendo projetos de classe, quando na verdade estamos defendendo projetos de governo. O caráter de classe quase sempre independe de quem está propondo, e sim do quê está sendo proposto. Mas o despertar para essa consciência é penoso e depende de diversos fatores. Por isso, nós não somos necessariamente culpados, no sentido moral, por Bolsonaro. Mas nossa apatia o gestou.
Imagine a cena: manifestantes saltam sobre o congresso nacional berrando gritos de protesto. Em outro dia, é ateado fogo no palácio do Itamaraty. A imprensa, antes detratora, não vê mais possibilidade de atacar os protestos e passar a transmiti-los como fruto de uma rebeldia à brasileira ante os nossos problemas históricos. Vários e dispersos. Essas foram as marchas de 2013, impulsionadas pela intrínseca relação entre as obras da Copa das Confederações/Copa do Mundo e o caos urbano nas grandes metrópoles brasileiras (antes dos vinte centavos paulistas, os porto-alegrenses trancavam as ruas pela revogação de um aumento abusivo). O Brasil viveu o auge da insurreição ali, batendo às portas.
Congresso é tomado em 2013. Os manifestantes prometiam: amanhã ia ser maior. Foto: Marcello Casals Jr.//Agência Brasil
Para entender esse fenômeno, temos de voltar aos “gloriosos” anos 2000. Certamente não pela moda das sobrancelhas hiper-depiladas ou pelas calças abaixo da cintura. O que acontecia no mundo era um fenômeno em que governos minimamente identificados com pautas progressistas chegavam ao poder. Tony Blair/Gordon Brown na Inglaterra, François Hollande na França, Gerhard Schröder na Alemanha e, ao fim da década, a emblemática vitória de Barack Obama nos Estados Unidos. Esse cenário não é homogêneo, mas chegou para todos. Nós latino americanos tivemos o casal Kirschner, o chavismo, Evo, Michelle e, claro, as experiências de Lula e Dilma. Esses governos tiveram uma coisa em comum: tentaram conciliar, cada um a sua maneira, vitórias sociais com a manutenção do sistema econômico como conhecemos. Absolutamente nenhum termo do pacto econômico estabelecido no pós-Segunda Guerra (e, especialmente, no pós-Muro de Berlim) foi revisto. Quem lucrava antes, continuou lucrando.
Até que a conta veio.
Não é coincidência que foi pela mão destes governos que a maior crise da história do capitalismo se instalou, em 2008. O mundo inteiro entrou em uma recessão global que dura até hoje. Instituições foram sendo derrubadas uma a uma e a “Era de Consensos” e conciliações que vivemos por toda essa década se instaurou. Estava em marcha a “Era dos Extremos”, das polarizações, da fúria berrante cortando o ar. A marcha da miséria e do desemprego demorou, mas chegou ao Brasil. E o que o governo progressista de Dilma Rousseff fez? Cortou gastos e colocou um dirigente de banco para presidir a economia do país. Em plena recessão global, estávamos expulsando pessoas de suas casas para construir estádios. O caldeirão explodiu em 2013.
Eu vivi cada dia daquele 2013. Nas ruas de Santa Maria, onde os protestos se confundiam (muito positivamente) com a luta por justiça aos mortos da Boate Kiss. Na televisão. Nas redes. E o discurso que a esquerda (não só a atrelada a setores do governo) passou a tomar é o de que aquela era uma marcha enfraquecida e sem propósito. Ouvir que “#OGiganteAcordou é um desrespeito aos movimentos sociais a tanto tempo na luta!” passou a ser uma constante. A análise de conjuntura mais bem feita passou a ser pautada por argumentos como “meus pais tão apoiando os protestos, não tem como isso ser de esquerda!”. Ora, nenhum protesto é de direita ou de esquerda até que as pessoas façam dele de direita ou de esquerda. Sim, 2013 gerou 2014, 2015, 2016 e os recuos do Governo Temer. Mas gerou porque nós deixamos que isso acontecesse. Nós abandonamos as ruas e esvaziamos a pauta. Nós defendemos um governo que traía constantemente os interesses de classe ao invés de defender os próprios interesses de classe. É desse ovo, posto enquanto tremelicávamos de medo de um tal “avanço da direita”, que saíram os monstros.
Um desses monstros foi Jair Messias Bolsonaro. Mas não o único. A esquerda no mundo inteiro, banhada pelas “vitórias” da década anterior, preferiu a alternativa institucional, e deixou que esse ódio anti-sistema fosse apossado por Donald Trump, Marine Le Pen entre outros. É sintomático que o grupo liberal “Livres” tenha anunciado sua saída do PSL quando o mesmo aceitou receber Bolsonaro. Esse tipo de reflexão esta muito presente no novíssimo “Só mais um esforço”, do filósofo Vladimir Safatle. O que nós estamos vendo não é uma “onda liberal”: a democracia liberal está em ruínas e Bolsonaro não vai morrer abraçado com ela, mesmo que absorva algumas de suas pautas. Também não é uma “onda conservadora”: conservar o quê? Esse estado de transição que vivemos? Não. É uma marcha reacionária, pois reage, pois enfrenta, pois revoluciona, pois faz exatamente o que a esquerda deveria estar fazendo, só que às avessas.
Quando foi que esquecemos que o poder emana do povo?
Foto: Portal Brasil
A falta de mobilidade e o medo de perder o poder nos fez responsáveis pelo surgimento destas figuras. Mesmo não sendo vitoriosas eleitoralmente em todos os casos (França e Alemanha, por exemplo) é notório o seu crescimento exponencial ao longo do globo. Nós fomos medo, quando deveríamos ter sido esperança. A foto acima retrata o velório de Juscelino Kubitschek, em Brasília. Debaixo do nariz da ditadura, milhares tomaram as ruas e carregaram seu caixão. As vozes entoavam a cantiga, historicamente relacionada à JK:
Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?
Como poderei viver, como poderei viver,
Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia?
JK não era nenhum socialista e sua trajetória não é nenhum exemplo de progresso às lutas sociais no Brasil. Mas essa comovente cena nos lembra uma informação bastante relevante que grande parte da esquerda parece teimar em esquecer: o povo brasileiro não é burro. Quando esses símbolos dialogam com seus sentimentos mais profundos de ira e indignação, o povo se filia a eles. Está na hora de destronarmos Bolsonaro do seu posto de “campeão anti-sistêmico”. Chega de negociatas ou conciliações, apenas a radicalidade de um discurso genuinamente classista pode impedir o avanço desse tipo de figura. Está na hora de voltarmos a ser referência para as ruas, para os campos e às favelas. Está na hora de a esquerda não temer dizer seu nome (em mais uma citação à Safatle). E o primeiro passo está em considerar que a desvinculação popular às demandas institucionais não é só legítima, mas necessária.
É assim que vamos vencer.
Mateus de Albuquerque é jornalista, cursa mestrado em Ciências Sociais e membro-fundador do BOCA Jornalismo. Gosta da política discutida nos bares (por que boteco é muito chique) e vai tentar reproduzir isso nesse espaço. Acredita que são nessas acrópoles modernas, despidas de terno e gravata, que a política é debatida sem suas maquiagens habituais. A conta é por vocês.