Cultura do estupro: isso não é sobre sexo

Existem assuntos que, por mais que sejam muito delicados e disparem uma centena de gatilhos emocionais fortes, ainda precisam ser abordados com mais frequência. Claro, com frequência e com muita seriedade. Não sei em que momento da sociedade não teremos que falar sobre estupro, por exemplo. Podemos remeter à história e a formação das sociedades contemporâneas utilizando o argumento de que tudo foi forjado a custa de sexo e sangue. No caso da cultura do estupro, essa cultura que respiramos cotidianamente, estupro tem relação com poder muito antes de relacionar-se a sexo. Na verdade, estupro não tem relação com sexo e é por isso que vivemos em uma cultura do estupro.

Pode soar pesado falar em cultura do estupro – parece até que estamos ensinando aos homens a não respeitarem a soberania das mulheres sobre o próprio corpo, a respeitarem a vontade e a entenderem sobre e aplicarem o consentimento.

Mas, sim, é isso aí mesmo.

Tem momentos que alguns casos tornam-se midiáticos e normalmente eles agendam comentários a respeito. Um caso recente foi o estupro que ocorreu com a escritora Clara Averbuck. Clara postou um desabafo em suas redes sociais, sinalizando seu abalo emocional e demonstrando, inclusive, resquícios físicos da violência, como um olho roxo. No caso de Clara, seu desabafo é um momento no qual a gente pensa que não se pode ler algo ou alguém que ouse condená-la por uma violência sofrida. Mas foi o que aconteceu. Com isso, tendo o conhecimento do tipo de comentário feito diante de um caso de estupro ou violação, é que se constata que ainda precisamos falar mais sobre a cultura do estupro e sobre alguns “mitos” que se relacionam a essa violência.

Primeiro que estupro é sexo sem consentimento. Qualquer sexo sem consentimento. É um ato de extrema violência simbólica, psicológica e física, mas pode acontecer no “conforto do lar” ao invés de em uma mata fechada (na verdade, porcentagens altas demonstram que a maioria dos casos de estupro ocorrem dentro da casa da vítima e são cometidos por pessoas próximas a ela, como pais, padrastos, namorados, maridos, amigos etc). O outro “mito” é esse mesmo: namorados, maridos estupram, sim. Para isso voltamos a sentença anterior: estupro é sexo sem consentimento. Infelizmente há uma lista gigantesca de casos de estupro por companheiros ou parentes próximos, motivados pela ideia, inclusive, de que estar em um relacionamento com alguém implica em disposição sexual sempre. Controlar a mulher ao ponto de induzi-la a transar sem vontade infelizmente está muito longe de ser uma exceção. Sem contar os estupros que acontecem enquanto a vítima dorme ou quando a própria mulher manifestou desejo de parar com a relação e o cara não dá ouvidos. Parece muito simples para não se entender, né? Mas, mesmo que você esteja transando de fato com alguém, ambos pelados, ambos foram para cama de livre e espontânea vontade, se em alguma hipótese a mulher não se sentir mais confortável e pedir para que você pare e você não parar, sinto muito, mas isso é um estupro. Sobre estar pelado, vai aí mais um mito: roupa, assim como lugar, não determina estupro. Essa violência ocorre em diferentes países, com diferentes culturas, em todo o mundo, a qualquer hora do dia, com mulheres despidas ou completamente vestidas. Isso porque estupro não é sexo, é abuso de poder.

E, por falar em dados, aí vão alguns preocupantes: se não vivemos em uma sociedade que é conivente com o estupro, então o que justifica que mais de 60% da população teme sofrer um estupro e esse percentual é de 90% para mulheres? Levantamentos do Ipea que desmascaram: até 2014, o Brasil tinha um caso de estupro notificado a cada 11 minutos. Porém, o número é bem maior, pois, menos da metade dos casos de estupro são realmente notificados. E aí que entra um pouco o exemplo de Clara: não se acredita na mulher, não se acolhe vítimas de estupro, não há tratamento legal ou social que dê conta da necessidade. Ser estuprada é ser condenada a gritar sem ser ouvida.

É uma sensação horrível sentir-se disponível a um tipo de violência cotidianamente, mas, nós mulheres comumente nos orientamos pela geografia da violência: nós cuidamos onde vamos, nós mudamos a rota, nós andamos com a chave na mão e aprendemos alguma luta, nós ligamos para as amigas, nós tentamos não sair sozinhas e nada disso é porque somos covardes. Já troquei de roupa, sim. Já mudei de rota, sim. Já pedi para irem comigo, sim. Mas a violência está em todo o lugar e a gente tenta se proteger sabendo que, por enquanto, nunca estamos completamente protegidas. E sabe por quê? Porque podemos mudar todas as rotas e trocar todas as roupas, mas o pensamento que norteia a maneira como enxergamos sexo e consentimento em nossa sociedade é violento. É a cultura do estupro, e, sim, ela existe, não é falatório, não é vitimização, não é irresponsabilidade. É cultura porque sedimenta as bases de um tipo de pensamento que é reproduzido e se apega a nosso cotidiano.

Minha amiga Carolina Barin escreveu e eu concordo: homens não aprendem sexo com consensualidade. Eles aprendem a ter prazer e a se satisfazerem. Mulheres aprendem a ceder porque precisam ser desejadas para que sejam úteis. Nosso prazer é voltado à satisfação masculina e o prazer masculino é voltado para o sexo como caminho para o próprio prazer, de maneira egoísta e consequentemente violenta. Somos deseducadas sobre nossa própria sexualidade. Somos condenadas, julgadas e deslegitimadas pela mesma sociedade que objetifica nossos corpos e nossa sexualidade. Uma sociedade que cultua nosso corpo como objeto porque somos o canal de satisfação de alguém, e não a satisfação de nós mesmas. Esse culto organiza como nosso corpo deve ser, em que posição devemos estar, a quem devemos satisfazer. Quando temos um objeto, e não um sujeito, não esperamos emoções ou sentimentos por parte deste, né? Está na publicidade, nos programas de televisão, nas séries, no imaginário popular, no senso comum, nas ideias de festas universitárias, na violência das ruas ou do interior das casas. A cultura do estupro é a cultura que objetifica o corpo da mulher, negligencia o consentimento do sexo, deslegitima a vítima e não sabe o que fazer com uma sociedade inteira que se alimenta desse pensamento. Porque a gente pode até ler alguns comentários raivosos alegando castração química para estupradores, porém, não é tratando casos de estupro como se fossem exceções grotescas por parte de homens sem condições de viver em sociedade que abordaremos a ferida. Infelizmente, estupro não é uma exceção e o punitivismo tampouco uma solução.

Por termos criado toda uma noção sobre estupro como uma violência distante – uma vez que invisibilizamos as raízes da cultura do estupro no nosso cotidiano – é que deslegitimamos tanto uma vítima dessa violência. Procuramos por pistas nocivas, exigimos fratura exposta, questionamos sua palavra, ignoramos seu depoimento. Na publicação de Clara, muitas condenações sobre ela ter optado não realizar um Boletim de Ocorrência do caso. Pessoas que condenam mulheres por não procurarem delegacias e prestarem queixa não conhecem como o sistema atua e nem como vítimas de estupro são tratadas. Nem todos os locais estão preparados para receberem e orientarem vítimas de violência, a deslegitimação da fala é constante, as pessoas sempre vão procurar um motivo para o que aconteceu, como se qualquer motivo do mundo justificasse um estupro. Não precisamos enganar ninguém afirmando que as muitas perguntas ou a exposição são métodos de comprovação da violência. O que nós temos, na verdade, é uma descrença generalizada na violência contra a mulher. Muito disso porque ainda não compreendemos de fato o que é consentimento e que um estupro não é fruto de um impulso sexual violento e incontrolável, mas um abuso frio, premeditado no seio de uma sociedade machista e que objetifica mulheres. Um outro dado alarmante sobre estupro e sobre denúncia: se 70%, 80% dos casos de estupro são com crianças, como fica o acolhimento, a confiança ou as tratativas legais sobre o caso?

Precisamos falar mais abertamente sobre, parar de condenar mulheres por violência sofrida, orientar e acolher adequadamente vítimas dessa violência, combater a cultura do estupro ensinando consentimento aos homens. De verdade. É bastante dolorido, mas viver imersa em uma sociedade que cultua o estupro é saber que o perigo mora ao lado, sempre.