Em março de 2018, o Pussy Whipped, primeiro álbum da banda norte-americana Bikini Kill, completou 25 anos. Para homenagear o lançamento do álbum que mudou a cena Riot Grrrl nos anos 1990, a Noisey Brasil lançou a coletânea Insubmissas – 25 anos de Pussy Whipped. Entre as doze girl bands responsáveis por fazer a releitura do álbum está a banda gaúcha 3D, referência em punk rock feminino no Rio Grande do Sul desde os anos 1980.
Capa da coletânea Insubmissas – 25 anos de Pussy Whipped. Foto: Divulgação//Boca Jornalismo
A atuação das mulheres na música tem recebido cada vez mais visibilidade e espaço para existir e ser reconhecida. Foi nesta crescente que a banda 3D esteve em Santa Maria, onde participou do GRITA, primeiro festival independente de arte e música feminina da cidade. Durante a visita, o BOCA Jornalismo conversou com a baixista Julia Barth, a baterista Liege Milk, a guitarrista Letícia Rodrigues e a vocalista Polaca, que junto com a guitarrista Maria Otília formam a banda porto-alegrense. Elas falaram sobre as mudanças da cena underground, o espaço das mulheres como musicistas e a importância de estimular iniciativas que coloquem as mulheres em destaque na produção da música no Brasil.
Boca: Como funciona a 3d?
3D: Banda de mulher tem uma questão: a gente tem uma dificuldade seríssima de tempo pra ensaiar, pra treinar sozinha pra show, porque todas nós somos multitarefas, temos pequenas empresas, somos mães, temos as crianças, a casa, os caras ou não. Então, acho que o tempo é a maior dificuldade que a gente encontra em banda de mulher. Até mesmo pra compor, sai pra beber, porque o rock a premissa de ser amigo, quando tu deixa de ser amigo, desanda. E a gente não tem conseguido, tem trabalho, faculdade, fica meio difícil.
Boca: Como vocês veem eventos como o GRITA? Eles estão acontecendo?
3D: É fundamental [que eles aconteçam]. Acho que a gente tem a impressão de que essas coisas são fundamentalmente masculinas porque a gente não se reconhece nessas funções, nessa posição, por exemplo, de musicista. É muito importante trazer mais mulheres pra música por causa do exemplo: “tem uma mulher que faz isso, então eu também vou fazer”. Por isso é importante ter festivais de bandas só de mulheres, com mulheres na técnica, na produção, em todas as funções, porque também não é só tocar um instrumento, existe toda uma estrutura de produção pra fazer um festival e aqui a gente vê as mulheres trabalhando nessas coisas, operando som, rodeando. Quando a gente tá como publico num festival, a gente ve só a ponta do iceberg, só o show mesmo. Todo o trabalho de pré-produção, pós-produção envolve uma estrutura gigante e é importante ver mulheres fazendo. E as mulheres fazem muito. Eu acho incrível o grita estar acontecendo, a gente tem feito em Porto Alegre um festival também só de banda de mulheres ou que tenha mulheres na sua formação. Estamos fazendo o Vênus em Fúria desde 2016. Nós também somos voluntárias do Girls Rock Camp. Santa Maria tem potencial para ter um Girls Rock Camp também, a gente teve muitas pretendentes a voluntárias de Santa Maria para várias funções. Só nos resta apoiar e torcer que role mesmo. E os festivais têm que acontecer pra a gente se conhecer e se identificar, porque a gente vê poucas mulheres fazendo. O que acontece é que sempre tem algumas mulheres, mas é uma mulher no meio de um grupo de caras, é a “brother” ali, uma única mulher num grupo de vários caras. E aqui a gente não é a única no meio de um monte de caras. É um processo: um dia ela é uma mulher em uma banda de vários caras, no outro dia ela está numa banda com a maioria formada por mulheres e um cara, dali a pouco é uma banda só de mulheres e assim as coisas vão acontecendo. Por isso a importância de existir esse tipo de evento, em que as pessoas vão se conhecendo e formando uma rede. A gente forma uma cena. E eu tô pra dizer que as mulheres estão segurando o underground hoje no Brasil. A gente tá fazendo esse tipo de evento acontecer, eventos que não tem um patrocinador que paga tudo. Uma ação entre amigas, que é o underground, o “faça você mesmo”, quem tá fazendo isso em todo o Brasil, de fato, são as mulheres.
Boca: Por que isso acontece?
3D: Porque eu acho que os homens já estão numa situação tão confortável que eles não precisam, porque as bandas dos caras são chamadas pros eventos, as bandas das minas não são. Então, a gente sempre teve que construir a nossa cena, buscar, criar as nossas oportunidades. Infelizmente, talvez, a gente tenha que criar com isso de ser só de meninas, quando na verdade a gente quer que seja pra todo mundo, mas, às vezes, a gente precisa dar visibilidade para um problema para que ele deixe de ser um problema. Claro, seria bom se não precisasse segmentar, que todo festival tivesse 50% [de bandas de mulheres]. Mas não é, vê em um grande festival, quantas bandas com mulheres têm? E tem muita banda com mulheres. A gente vem dos anos 90, em que as grandes bandas tem uma mulher, entende? Fora as bandas de mulheres mesmo. Mas se tu vai ver o line-up de um grande festival tem duas bandas que tem mulher, quando muito. Aí normalmente não é uma banda, é a cantora – nada contra as cantoras – e ela está sendo super analisada e posta em jogo, se tem qualidade mesmo. Quando os caras veem que tu toca bem, eles dizem “uau, tu toca que nem um cara”, “pô, legal, tu, mina, e tocando pra caralho”, “tu toca que nem macho”, “tu canta que nem um cara”. A gente grita, a gente faz punk rock, eu não canto que nem um cara, eu canto como eu quero cantar, como eu canto, independente do meu gênero. É isso. A gente tem que correr atrás dessa falta histórica de falta de espaço para as mulheres.
Banda 3D se apresentando no GRITA. Foto: Boca Jornalismo.
Boca: Qual a diferença de trabalhar em uma banda só com com mulheres?
3D: A empatia. Se eu digo que eu não posso ensaiar hoje porque meu filho está doente, meu filho está com febre, ou porque eu tomei um pé na bunda, a banda de mulheres para de ensaiar e vai te dar um abraço e dizer “tá, o ensaio não importa”. Na banda de caras é diferente – não estou dizendo que eles sejam insensíveis, mas é uma cultura insensível, em que eles tem que ser insensíveis. Se tu chega mal no ensaio com os caras, eles nem perguntam “tu ta bem?”. Eu entro na sala de ensaio com essas mulheres e elas olham pra minha cara e sabem se eu to sofrendo, mesmo que eu não diga nada. Elas me olham e dizem “tu precisa de um abraço”, “o que que houve?”.
Boca: Nos últimos anos, tem havido uma movimentação feminina bem forte na música. Como era isso antes? Há uma negligência do registro da história ou tem crescido nos últimos anos?
3D: Não, aumentou a visibilidade, principalmente com o boom das palavras feminismo empoderamento. Iniciativas de mulheres sempre existiram, o que faltou foi registro histórico mesmo. Sempre existiu o Riot Girrrl, que não é um termo comercial como se tornou, hoje, o girl power. O Riot Girrrl é um movimento de mulheres artistas – artistas visuais, musicistas, enfim – que surgiu nos Estados Unidos. Elas sempre se articularam e nem tinha internet, era por meio de fanzine, de carta, de ir lá e fazer acontecer, montar banda, fazer show. Mas a visibilidade era menor, hoje tá vindo à tona assim acho que bom o boom dessas palavras, que, infelizmente, estão virando estampa de roupas das lojas. Tem uma frase que resume [a ideia de empoderamento] que é sempre escrita em cartazes nos protestos feministas: “quando uma mulher avança nenhum homem retrocede”. Não significa que a gente vai desempoderar alguém. Significa que a gente vai se empoderar se equiparar, pra chegar no que a gente acredita que é igualdade. Equidade, né.
Boca: Vocês acham que esse aumento de visibilidade vai fazer com que as meninas jovens, adolescentes tenham oportunidades melhores que vocês tiveram?
3D: É o que nós esperamos. É pra isso que a gente faz o Girls Rock Camp, pras crianças não crescerem com essa opressão achando que elas não podem ser. Por exemplo, no punk rock, as mulheres acham que, porque não são virtuosas, não podem ser boas guitarristas. Isso não quer dizer nada, depende do teu estilo. A questão é que a nossa geração tá se desconstruindo e a gente espera que essa nova geração já seja construída com menos preconceitos, com menos falsos limites. Mas eu acho que isso já está acontecendo, porque os jovens já sabem disso.
Boca: Estando na organização do Girls Rock Camp, qual a coisa mais legal?
3D: Foi ter criado essa rede de mulheres, eu só tenho tantas mulheres amigas e colegas de banda e projetos, porque eu participei do Girls Rock Camp Brasil. A gente é criada pra disputar: disputar marido, ser a mais bonita, ou a mais inteligente, a mais bem sucedida. Pra mim, o mais incrível, com as crianças, é dizer “olha só, meninas, vocês podem fazer uma coisa incrível juntas, sem competição. Quando a gente ajude uma a outra, todas crescem! Pra gente ser grande a gente não tem que ser melhor que as outras.”. A gente vem de um sistema educacional que impulsiona a competição. De que competições as mulheres participam desde cedo na escola? A “Rainha da Festa da Primavera”, a “Rainha da Festa do Pêssego”, a “Primeira Princesa”, a “Segunda Princesa”. A partir do momento em que você estabeleceu que tem a rainha, a primeira princesa e a segunda princesa, você está pregando uma competição territorial, uma hierarquia, gerando frustração e desempoderamento. É muito triste. A ideia do girls rock camp é, justamente, que não é uma competição, não é um festival, todas as meninas montam as bandas lá, trabalham em equipe e todas estão lá por um propósito, que é aprender a tocar, fazer uma música e fazer um show. E todas fazem. O momento em que você vê elas no show tocando e cantando a música que elas fizeram durante a semana toda, juntas, é indescritível. Esse é o melhor momento. Muitas delas nunca se viram antes e, às vezes, numa banda, tem uma menina de 7 anos e uma menina de 17 que se harmonizam pra tocar bem. E uma pobre e uma rica. Uma branca e uma negra. Uma hétero e uma lésbica. Enfim, não importa, entende? Elas estão todas juntas lá fazendo uma coisa juntas e se respeitando. Uma coisa muito interessante é como as meninas chegam no Camp no primeiro dia pisando em ovos, não abrem a boca; no segundo dia já conversam; no terceiro dia são melhores amigas. Elas se transformam: o jeito de caminhar, o jeito de falar, o tom de voz, o cabelo, a roupa, o jeito de pisar, já chegam pisando com segurança. Elas não aprendem só a tocar um instrumento, mas a ter noções sobre o que que pode ser um abuso sexual, noções de defesa pessoal, onde uma pessoa pode tocar, onde não pode.
Boca: Como é/foi a volta da 3D?
3D: Eu sinto uma aceitação muito maior hoje. Na época [anos 1980], fizemos uns 3 ou 4 shows, eu acho. A banda que durou um ano, um ano e meio, porque foi uma brincadeira de estúdio e eu parei porque engravidei do meu filho, o Pedro, que é um multi instrumentista e produtor, um fera aí. Hoje em dia, por causa da luta, a gente exalta muito isso: uma banda de mulheres! Mas, nos anos 80, a gente só queria só ser uma banda, nem tinha esse papo. A gente gostava era de brigar com mulher, não era com os guris que a gente brigava. Olha a inversão. Mas era uma disputa que agora a gente ta tentando desconstruir daquela época. A gente era muito mais masculinizada. Mas naquele contexto era diferente. E foram só 30 anos e como mudou! A gente vê as letras das bandas das meninas, das campistas [do Rock Girls Camp], com temas feministas, que partiram delas. Quanto abuso sexual a gente sofreu, todas nós, e não sabia que era abuso. A gente já foi estuprada e não sabia que era estupro. Tu disse não e o cara disse sim e tu achou que tinha que ser, a gente achava que tinha obrigação com os caras. Realmente, mudou muito, umas mudanças mais sutis, outras menos é um processo. A gente não pode afrouxar nunca, nunca baixar a guarda. No Camp, a gente não está lá pra falar da opressão do homem na sociedade, a gente está lá pra fazer as crianças se divertirem e aprenderem a tocar. A gente não panfleteia. E, mesmo assim, as letras que elas fazem sozinhas são, em geral, de protesto, quase todas. Se a gente tivesse essa consciência, a gente não teria passado por tantos abusos sexuais e psicológicos. A 3D é uma banda feminista mas as letras não são protestos diretos, são feministas porque falam de um ponto de vista feminino. Hoje em dia o feminismo é consciente do feminismo, nos anos 80 não era.